A relevância jurídica da confusão patrimonial e a responsabilidade tributária pessoal do infrator

Matéria sob reserva de Lei Complementar

1.Responsabilidade tributária é matéria a ser disciplinada por Lei Complementar, segundo consta de nossa Carta Magna no artigo 146, que se transcreve em parte:

Art. 146. Cabe à lei complementar:
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;

2.Em razão desta restrição da Lei Maior, a melhor doutrina vem lecionando que as novidades trazidas pela Lei Ordinária nº 10.406 de janeiro de 2.002 – Novo Código Civil- não têm eficácia sobre o Direito Tributário quando o tema versado for responsabilidade tributária.

3.Em foco está o disposto no art. 50 do atual Código Civil que assim vem redigido:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

4.A introdução deste artigo em nosso Direito Civil encerra a acolhida da figura da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) em modelo de concreção do direito, segundo o qual as obrigações são conhecidas depois da instauração do processo e não antes, como ensina Humberto Ávila (in Direito Tributário e o Novo Código Civil, Quartier Latin, São Paulo, 2004, pgs. 78/79). O ilustre professor ainda adverte, no mesmo texto, que este modelo de concretização a posteriori não se harmoniza com o nosso sistema constitucional tributário, todo ele fundado na previsibilidade- segurança jurídica, legalidade, anterioridade e irretroatividade, entre outros-. As obrigações tributárias, em nosso ordenamento, são tomadas com o mínimo de previsibilidade dos agentes econômicos.

5.A figura da desconsideração da personalidade jurídica, mesmo antes da promulgação do novo Código Civil, já se fazia presente no Código do Consumidor, e, também, em nossa jurisprudência. Agora, ela aparece em vários ramos de nosso direito- do consumidor, do trabalho e do meio ambiente- com a mesma razão de ser: o abuso do instituto jurídico da personalidade jurídica. De novo, mesmo, se tem que o art. 50 lançou os limites da definição do que seja abuso da personalidade jurídica indicando dois eventos que marcam a ocorrência concreta do que desenhado na autorização concedida exclusivamente ao Juiz: o desvio de finalidade da existência da pessoa jurídica e a confusão patrimonial.

6.Parece que o legislador ordinário, na ocasião da redação do texto, se preocupou em deixar segregada a expressão “confusão patrimonial” para evitar que o intérprete fosse levado a deduzir que os eventos descritos se materializam da mesma forma, isto porque, pode haver confusão patrimonial sem que se vislumbre o desvio de finalidade.

7.Quanto ao evento “confusão patrimonial”, temos que não há definição expressa em nosso ordenamento. A referência normativa se corporifica pelo método da interpretação por contrastefrente ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, consagrado em nossa Constituição ex vi do disposto no §2º do art. 156 (capitalização de pessoas jurídicas mediante conferencia de bens), entre outros. Assim qualquer ocorrência que implique, de forma direta ou indireta, na transgressão da absoluta segregação jurídica do patrimônio, ou de sua gestão, pode levar o Juiz a qualificar o ocorrido como confusão patrimonial.

8.Exemplifiquemos algumas ocorrências:

a)confusão patrimonial direta- certo posto de gasolina, como pessoa jurídica, adquire dois automóveis de luxo para serem usados pelos dois sócios cotistas que tentam justificar perante o Juiz que a aquisição dos bens se justificou pela necessidade de representação condigna perante os três únicos fornecedores (confusão patrimonial direita);

b)confusão patrimonial indireta- todos os gastos pessoais dos dois sócios cotistas do posto de gasolina são pagos pela pessoa jurídica enquanto que, com os recursos do “pró-labore” recebido, as pessoas físicas pagam prestações de imóveis adquiridos em seus próprios nomes.

Responsabilidade tributária pessoal prevista em Lei Complementar

9.Importa, no ponto, trazer à lume o disposto na Lei Complementar nº 5.172 de 1.966 (Código Tributário Nacional – CTN-), precisamente o que consta do art. 135, verbis:

Art. 135 – São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
I – as pessoas referidas no artigo anterior;
II – os mandatários, prepostos e empregados;
III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

10.Não se cuida neste dispositivo dos casos de responsabilidade por sucessão ou por substituição e muito menos do solidariedade passiva. Trata-se, isto sim, de situação rara na qual a pessoa jurídica passa ao largo da relação obrigacional que se instaura, sem que para isso a autoridade tributária se veja na contingência de superar a personalidade jurídica. O art. 135 do CTN “em nenhuma circunstância, tem o condão de permitir formas de desconsideração da personalidade jurídica” ( Heleno Torres, Direito Tributário e Direito Privado, Revista dos Tribunais, 2.003, pg. 471). A sujeição passiva decorrerá da aplicação da “solução legal, que já se apresenta axiologicamente correta; não é preciso desconsiderar a empresa para imputar obrigações aos sócios, pois, mesmo considerada a pessoa jurídica, a implicação ou responsabilidade do sócio já decorre do preceito legal” (Luciano Amaro, Desconsideração da Pessoa Jurídica no Código de Defesa do Consumidor, RDM, v.88, pg.73).

11.Humberto Ávila, na obra já citada, vai no mesmo sentido para assentar que só pelo aspecto formal as normas de responsabilidade civil não poderiam ser aplicadas na seara tributária, mas reconhece que o conteúdo do art. 135 do CTN ao fazer referencia à violação da lei ou ao contrato social incorpora por simetria os mesmos princípios albergados no art. 50 do Código Civil.

 

A relevância jurídica da confusão patrimonial

12.Sabemos que o Direito Tributário tem autonomia relativa para construir seus próprios conceitos, desde que respeitados os limites constitucionais expressos ou implícitos. De outro lado o mais comum é se ver o Direito Tributário fazendo uso dos conceitos já consagrados no Direito Privado. Muitas vezes é preciso navegar pelo Direito Privado para se conhecer o verdadeiro alcance de uma imposição tributária, tanto em seu aspecto material como temporal. Segue-se que quando a autoridade tributária qualifica certo encadeamento de atos particulares como “simulação”, por exemplo, se vale do conceito legal pré-estabelecido no direito privado, não para fundamentar a exigência tributária em si, mas para levantar o véu que estava a esconder o fato gerador da obrigação tributária. Em outras palavras a simulação é o critério jurídico meio para se afirmar a norma tributária concreta. Nada de estranho neste fenômeno frente à unicidade do direito.

13.Sempre houve dificuldade de ordem prática para se identificar, no mundo real das coisas, o que mencionado no art. 135 do CTN como sendo “atos praticados com excesso de poderes ou violação de lei, contrato social ou estatutos”. O legislador tributário lançou expressões fluídas e imprecisas que não encontravam precedentes conceituais nem mesmo no Direito Privado, como no caso exemplo da simulação, já citado. Agora o Direito Civil atribui relevância jurídica à situação de confusão patrimonial para indicar a ocorrência de abuso do instituto jurídico da pessoa jurídica, não tolerado, diga-se de passagem, também, pelo Direito Tributário. Neste a intolerância vem consagrada em semântica diversa, é verdade, mas com o mesmo desiderato e sob valores simétricos. Portanto a confusão patrimonial se amolda ao que disposto no art. 135 do CTN.

14.Eduardo Domingos Bottallo, neste sentido, chega a afirmar que o art. 135 do CTN somente poderá ser acionado, pelo Fisco, quando ficar demonstrado que a obrigação tributária a cargo da sociedade decorreu de alguma das causas apontadas na Lei Civil (art. 50), reforçando sua dedução no brocado romano “ubi eadem ratio, ibi eadem juris dispositio”, ou seja, onde impera a mesma razão, deve prevalecer a mesma decisão- in Direito Tributário e o Novo Código Civil, Quartier Latin, São Paulo, 2004, pg.193-.

15.A lei civil (art. 50) encerra, em si, uma autorização para que o Juiz possa desconsiderar a personalidade jurídica. Por isso o Juiz decidirá, frente às circunstâncias, se usará ou não a faculdade legal; o mesmo não ocorre com o art. 135 do CTN. Caracterizada a confusão patrimonial, a autoridade fiscal elegerá de oficio (estrita legalidade em matéria de sujeição passiva) a pessoa física do infrator como sujeito passivo da obrigação tributária especifica surgida em decorrência da confusão patrimonial. Em outras palavras aquele que se beneficiou da confusão patrimonial responderá pessoalmente pela obrigação, figurando no pólo passivo da relação processual, se for o caso. De passagem, anota-se que de forma alguma está se aventando a figura do redirecionamento da cobrança tributária. Aqui, a pessoa física não é um terceiro vinculado ao fato gerador, mas o próprio contribuinte nos exatos termos que constam do inciso I do art. 121 do CTN (conceito de contribuinte) porque sua relação é pessoal e direta com a situação geradora do crédito tributário.

16.Sob o título “O STJ e a responsabilidade tributária do sócio”, em artigo publicado no Portal Consultor Jurídico, em 26 de Março de 2.010, a tributarista Bianca Delgado Pinheiro anotou:

“Ocorre que, recentemente, o STJ firmou o entendimento de que o ônus da prova na comprovação da responsabilidade de sócio cujo nome não consta da CDA é do exequente/Fazenda. Mas, de outra feita, surpreendentemente, cabe ao executado/sócio a prova de sua ilegitimidade passiva, quanto seu nome constar da Certidão de Dívida Ativa (CDA), em face da presunção de liquidez, certeza e exigibilidade deste título. Tal entendimento deverá ser aplicado a todos os processos em andamento em que se discute o mesmo tema. Com fundamento absolutamente simplista, o STJ acabou por impedir, em muitos casos, a defesa do sócio, sem prévia garantia do crédito tributário. Ou seja, ainda que seja evidentemente ilegítimo para figurar o pólo passivo da execução fiscal, dada a inexistência de causa para a sua responsabilidade tributária, terá o sócio que oferecer bens ou dinheiro suficiente à garantia da dívida fiscal, para possibilitar a sua defesa em Embargos do Devedor, e, assim, tentar se ver livre de execução instaurada contra o mesmo de forma absolutamente irregular e ilegal. Além do mais, terá que produzir prova de cunho negativo, ou seja, prova de que não agiu com fraude ou dolo, inexistindo sequer qualquer procedimento da Fazenda para tal constatação. A Procuradora da Fazenda Nacional, confortável com tal posicionamento do STJ, editou a Portaria 180, publicada em 25 de fevereiro de 2010, com orientações aos procuradores fazendários quanto aos procedimentos a serem seguidos por estes para a responsabilização dos sócios da empresa com dívida fiscal. Ainda que conste no artigo 2º da dita portaria interna que a inclusão do responsável solidário na Certidão de Dívida Ativa da União somente ocorrerá quando da ocorrência de excesso de poderes, infração à lei, infração ao contrato social ou estatuto ou dissolução irregular da pessoa jurídica, foi admitida tal constatação por mera declaração fundamentada da autoridade competente da Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) ou da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). Ora, a inclusão do sócio na CDA, para fins de responsabilidade tributária, somente poderá ocorrer após competente processo administrativo em que seja comprovada a existência de infração à lei, contrato ou estatuto social. Simples declaração da RFB ou da PGFN não é o bastante para tanto, configura-se, na realidade, absoluta arbitrariedade e amplo poder discricionário, não permitido nesse caso (grifamos).

17.Sem dúvida, não se pode mitigar a conclusão da citada articulista, pois sujeição passiva é matéria a ser discutida em sede própria, ou seja, no processo administrativo fiscal, quando às autoridades julgadoras poderão afirmar ou infirmar a relação processual instaurada, à luz do direito instrumental vigente, apreciando de forma ampla e irrestrita o inconformismo do acusado.

Conclusão

18.Embora não se possa afirmar que o art. 50 do Código Civil tenha ampliado o alcance do art. 135 do CTN, se pode dizer que a lei civil pôs em evidência a confusão patrimonial. Em outras palavras: o art. 50 declarou que a confusão patrimonial caracteriza abuso do instituto da personalidade jurídica. Assim a figura da pessoa jurídica será afastada, para fins tributários, pelas circunstâncias expostas no texto do art. 135 do CTN, quando no caso concreto ocorrer confusão patrimonial como arquitetada na Lei Civil.

19.Tanto para as pessoas jurídicas tributadas pelo Lucro Real, como para as pessoas jurídicas tributadas em regimes simplificados, fica vedada a confusão patrimonial. A confusão patrimonial pode se manifestar tanto pela apuração de que os bens de titularidade documental da pessoa física foram adquiridos com recursos da pessoa jurídica como, em sentido oposto, de que os bens de titularidade documental da pessoa jurídica foram adquiridos com recursos da pessoa física. Serão diferentes as conseqüências tributárias em cada situação. Atrai o art. 135 somente a primeira situação quando são desviados recursos da pessoa jurídica.

20.Outrossim, cabe advertir que não se deve aproximar a figura da confusão patrimonial, em sentido material, com os procedimentos formais de controle da segregação dos patrimônios das pessoas físicas dos sócios e da respectiva sociedade. Muitas vezes a conveniência ou a necessidade administrativa impõem que certa classe de bens e direitos sejam controlados em nome de um responsável pessoa física, como ocorre com a conta caixa, de várias empresas, cujos recursos são mantidos e controlados em depósitos bancários em nome de um, ou mais, dos sócios. Também não restará configurada a confusão patrimonial se uma pessoa jurídica saldar um débito de um de seus sócios, registrando o evento como lucro distribuído, antecipação de pro labore, ou mesmo como empréstimo concedido.

21.Estamos nos referindo a uma norma geral que versa sobre responsabilidade tributária, portanto sobre sujeição passiva. Esta norma geral será necessariamente integrada por uma disposição especifica de cada incidência – IRPJ, IRFON, CSLL- a qual irá desencadear o procedimento de apuração do quantum devido. Esta sujeição passiva somente terá lugar para o montante devido em razão direta da confusão patrimonial. Caso se apure outra infração, em um mesmo procedimento de fiscalização, permanecerá a sujeição passiva da própria pessoa jurídica.

22.Encerrando fica a advertência a todos empresários: provada a confusão patrimonial, o imposto devido, que dela surgir, poderá ser exigido da pessoa física vinculada àquela situação, que responderá com todos os seus bens.
- Publicado pela FISCOSoft em 22/06/2010

RENZO & SEWAYBRICK ASSESSORIA E CONSULTORIA TRIBUTÁRIA LTDA

Dr. Jeferson Roberto Nonato

 

 

 

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