Substância econômica versus forma jurídica nas operações de cobertura (HEDGE). Contabilização versus tributação
I – Introdução
Recentemente, a Comissão de Valores Mobiliários (Deliberação nº 604 de 19 de novembro de 2.009) aprovou os Pronunciamentos Técnicos CPC nºs 38, 39 e 40, para vigorar a partir do encerramento do exercício social de 2.010, aplicando-se ainda às demonstrações financeiras de 2.009 que serão ajustadas para efeito de comparação com as de 2.010.
Tais atos normativos versam sobre Instrumentos Financeiros e abordam a contabilização, a mensuração e a divulgação destes negócios.
Os limites conceituais que demarcam a expressão, “Instrumento Financeiro”, estão expressos no item 11 do Pronunciamento CPC nº 39. A leitura do citado item 11 revela que todo e qualquer contrato que dê origem a um ativo financeiro para a parte e a um passivo financeiro para a contraparte se insere no conceito de instrumento financeiro desde que o negócio possa ser liquidado por caixa (circulação física ou escritural de moeda) ou por meio de outro ativo financeiro.
Neste mesmo campo de definição ainda está inserta a figura do “Instrumento Patrimonial” designada como sendo todo contrato que indique o direito de um titular participar nos ativos de uma entidade após a dedução de todos os seus passivos (Recibo de Ações, Bônus de Subscrição, Debêntures Conversíveis, Partes Beneficiárias e outros semelhantes ou idênticos aos direitos de um acionista).
O Pronunciamento Técnico CPC nº 38 ainda (nos itens 4 e 5) indica os negócios que estão excluídos do alcance do ato, ainda que reúnam as características gerais dos Instrumentos Financeiros ( são os casos especiais para os quais existem Pronunciamentos específicos, como leasing, por exemplo), bem como informa do o alcance sobre contratos de compra ou de venda que possam vir a ser liquidados como se instrumentos financeiros fossem (liquidados pelo valo líquido antes do vencimento, por meio de entrega de outros ativos financeiros e desde que não estabeleçam item não financeiro para entrega ou tenham por objeto ativo de uso da entidade).
Em 19 de Novembro de 2.009, a CVM ainda aprovou (Ofício- Circular/CVM/SNC/SEP/ Nº 03/2009) a Orientação OCPC nº 3 que em seu item “7″ traz importante definição conceitual, nos seguintes termos:
Definição de derivativo
Derivativo é um instrumento financeiro ou outro contrato dentro do alcance desta Orientação que possui todas as três características seguintes:
(a) seu valor se altera em resposta a mudanças na taxa de juros específica, no preço de instrumento financeiro, preço de commodity, taxa de câmbio, índice de preços ou de taxas, avaliação (rating) de crédito ou índice de crédito, ou outra variável, às vezes denominada “ativo subjacente”, desde que, no caso de variável não financeira, a variável não seja específica a uma parte do contrato;
(b) não é necessário qualquer desembolso inicial ou o desembolso inicial é menor do que seria exigido para outros tipos de contratos onde seria esperada uma resposta semelhante às mudanças nos fatores de mercado; e
(c) deve ser liquidado em data futura.
Como se pode perceber a definição de derivativo pode ultrapassar o conceito de instrumento financeiro desde que todos os requisitos caracterizadores de um derivativo clássico estejam presentes nos contratos. Por esta razão estes derivativos não clássicos seguirão as determinações contábeis impostas pelos Pronunciamentos em questão. Vejamos a situação descrita no item “4″ do Pronunciamento CPC nº 38, “in verbis:
“4 Encontram-se dentro do alcance deste Pronunciamento os seguintes compromissos referentes a empréstimos:
(b) compromissos referentes a empréstimos que podem ser liquidados pelo valor líquido em dinheiro ou entregando ou emitindo outro instrumento financeiro. Esses compromissos referentes a empréstimos constituem derivativos”
Apesar da redação abstrata ousamos lançar um caso imaginário para que o leitor possa sedimentar a interpretação do texto:
PASSO I
Certa controlada estrangeira, sediada em território brasileiro, importa da controladora sediada nos Estados Unidos um equipamento fabril para sua linha de produção, fazendo um PASSIVO de importação em moeda estrangeira – dólar americano-;
PASSO 2
Para evitar o risco cambial, a empresa importadora entrega moeda nacional a uma Instituição Financeira sediada no País, a qual em troca da antecipação assume o compromisso de liquidar o passivo em moeda estrangeira na data do vencimento. Para a instituição financeira a operação se consubstancia em captação de recursos (“funding”) para a qual incorre em determinado custo e a empresa comercial em determinado ganho financeiro.
PASSO 3
O contrato entre a Empresa Comercial e a Instituição Financeira será considerado um DERIVATIVO nos termos do Pronunciamento CPC nº 38.
PASSO 4
O Derivativo será mantido no Ativo da Empresa Comercial sendo constantemente avaliado pelo seu justo valor em concomitância com o PASSIVO em moeda estrangeira gerado pela importação do equipamento e também avaliado pelo seu justo valor. O resultado líquido (net da operação) a ser reconhecido pelo regime de competência será a justaposição destas avaliações mensais (variação cambial ativa contra variação cambial passiva, mais ajustes da taxa de juros embutida). Frise-se, ainda, que o objeto protegido é um passivo financeiro em moeda estrangeira e não o equipamento importado.
Deste exemplo o leitor poderá deduzir que prevalece, para o Direito Comercial inovado, a SUBSTÂNCIA ECONÔMICA DA OPERAÇÃO e não as formas jurídicas adotadas, princípio este, aliás, presente em todos os citados Pronunciamentos Técnicos.
II – Operações de cobertura de riscos ( HEDGES)
“Hedge accounting” é a expressão de língua inglesa, usada internacionalmente para designar uma técnica de contabilização especial a ser aplicada, compulsoriamente, no caso de operações de hedge. Esta forma especial de registro contábil veio no âmbito dos referidos Pronunciamentos porque a concretude de tais negócios ocorre com o emprego de contratos derivativos.
“Essa contabilização tem como objetivo aplicar o regime de competência para essas operações de forma que as variações no valor justo do instrumento de hedge (derivativo) e do item objeto de hedge ( uma dívida, por exemplo) sejam reconhecidas no resultado do exercício concomitantemente” ( Sumário do CPC nº 38, item 11).
A palavra inglesa “hedge” pode ser traduzida para o português como sendo “cerca”, ou, “muro de proteção”. Nos mercados, financeiro e de capitais, tem o sentido de proteção contra oscilações de mercado – cambial, juros de mercado, riscos de crédito (rating), preços de commodities e outros – passíveis de mensuração com alto grau de confiabilidade. Por isso nem todos os riscos que afetam uma entidade empresarial podem ser cobertos por operações qualificadas como sendo hedge. O risco de obsolescência de um ativo físico, por exemplo, não pode ser eleito ou designado para uma operação de hedge (CPC 38, página 100, Apêndice AG110), por falta de confiança da comunidade econômica na mensuração.
Nas operações de hedge dois elementos nucleares serão sempre identificados; o instrumento de hedge (geralmente um contrato derivativo) e o item protegido ou “hedgeado” na citação coloquial de operadores de mercado. Entretanto a presença dos elementos econômicos nucleares não é suficiente para que uma entidade possa lançar mão da contabilidade especial das operações de hedge. Outros requisitos de ordem instrumental haverão de ser cumpridos para a efetiva compensação de resultados advindos das variações de mercado. Estes requisitos estão expressamente mencionados no item 88 do Pronunciamento CPC 38, listados em letras de “a” até “e” que tentamos simplificar como segue:
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Foram, também, as operações de hedge classificadas em três categorias distintas, a saber:
Hedge de valor justo quando o item protegido – um ativo ou um passivo- será mensurado a valor de mercado impactando o resultado contábil da entidade; neste caso o instrumento de hedge também será mensurado a justo valor sendo o resultado justaposto ao efeito derivado da avaliação do item protegido; vale dizer, o resultado econômico da operação é que será registrado em contas de resultado no regime de competência;
Hedge de fluxo de caixa; situação clássica de empresas que mantém estoque para venda de commodities cujos preços flutuam no mercado a vista e no mercado de futuros;os derivativos serão contratados a fim de compensar variações estimadas no fluxo de caixa futuro da entidade;
Hedge de investimentos, no exterior, sujeitos às mudanças de taxas de câmbio que impactam a Conversão de Demonstrações Contábeis.
Particularmente nos casos de hedge de fluxo de caixa, as entidades deverão decompor a variação havida no instrumento financeiro em duas parcelas definidas como:
1ª parcela efetiva do hedge (ganho ou perda) a ser contabilizada no PL como ajuste de avaliação patrimonial; esta parcela é apurada pela magnitude da compensação ocorrida entre a variação acontecida no fluxo de caixa e a variação no instrumento financeiro; esta parcela somente será levada a conta de receita ou despesa quando o ocorrer a transação “hedgeada” ou o ativo ou passivo protegido forem realizados contabilmente.
2ª parcela não efetiva que é aquela resultante da diferença entre a parcela efetiva e o total da variação do instrumento financeiro; havendo parcela não efetiva do ganho ou perda com o instrumento de hedge, esta será diretamente reconhecida em conta de receita ou despesa, no resultado do período.
Vejamos um exemplo numérico para esta hipótese de hedge de fluxo de caixa:
III – Tributação das operações financeiras- Disciplina vigente
Infere-se que no emprego desta técnica contábil, acima descrita, prevalece o princípio da SUBSTÃNCIA ECONÔMICA da operação e não os resultados dos atos e fatos jurídicos isoladamente considerados. Todavia este novel critério tem seu campo de aplicação circunscrito aos limites do Direito Privado. Até que a disciplina tributária atual não seja alterada, os resultados individuados dos instrumentos financeiros continuarão a ser tributados na fonte e na declaração das pessoas jurídicas, ainda que vinculados às operações de hedge. Neste sentido citamos o disposto no art. 5º da Lei 9.779 de 1.999 que preceitua:
Art. 5º Os rendimentos auferidos em qualquer aplicação ou operação financeira de renda fixa ou de renda variável sujeitam-se à incidência do imposto de renda na fonte, mesmo no caso das operações de cobertura (hedge), realizadas por meio de operações de swap e outras, nos mercados de derivativos.
É notório o reforço semântico aplicado pelo legislador ordinário; este fez questão de assentar que as operações de cobertura de risco são tributadas na fonte.
A razão desta ênfase parece ter origem em certa corrente jurídica que lançou a tese de que os ganhos em operações de hedge teriam natureza indenizatória, não correspondendo efetivamente a acréscimo patrimonial auferido, por que a ocorrência do ganho e dava em concomitância com a perda incorrida no item ou transação protegida. A matéria foi apreciada pelo STJ no Recurso Especial nº 591.357- RJ (2.003/0162507-5) onde ficou assentado na Ementa do Acórdão:
4. A operação de swap constitui típica operação ensejadora do fato gerador simples do imposto sobre a renda, posto que representa acréscimo patrimonial, obtido na troca de financiamentos em taxas diversas, sobre um montante principal, daí por que ser tributado na fonte.
Nas operações de cobertura de riscos, os contribuintes deverão observar a diversidade de regimes tributários em relação aos mercados de contratação do instrumento derivativo empregado, conforme esquema que segue:
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Por outro lado é oportuno que se lembre que o Direito Tributário assentou conceito próprio de operações de cobertura de riscos há muitos anos atrás, quando da edição da Lei nº 8.981 de 1.995 (art. 77, §§ 1º e 2º), até hoje inalterado e assim escrito:
§ 1º ((…)) consideram-se de cobertura (hedge) as operações destinadas, exclusivamente, à proteção contra riscos inerentes às oscilações de preço ou de taxas, quando o objeto do contrato negociado:
a) estiver relacionado com as atividades operacionais da pessoa jurídica;
b) destinar-se à proteção de direitos ou obrigações da pessoa jurídica.
§ 2º O Poder Executivo poderá definir requisitos adicionais para a caracterização das operações de que trata o parágrafo anterior, bem como estabelecer procedimentos para registro e apuração dos ajustes diários incorridos nessas operações.
Vale dizer, o legislador tributário fez uso do advérbio “EXCLUSIVAMENTE” para vincular as espécies de riscos da cobertura (preços e taxas) às atividades operacionais da empresa ou a determinados direitos ou obrigações de uma pessoa jurídica numa verdadeira matriz cruzada que pode assim ser demonstrada:
Quanto ao estabelecimento dos demais requisitos caracterizadores das operações, a Lei Ordinária delegou ao Poder Executivo a competência regulamentar no âmbito do Direito Tributário. Esta incursão do legislador tributário, de per si, é suficiente para autorizar a conclusão de que a operação de cobertura de risco se caracteriza como situação de relevância jurídica e não simplesmente um conceito do mundo das finanças. Caberia, portanto, ao Poder Executivo, neste diapasão, o estabelecimento de instrumentos específicos de aferição destas operações para que os operadores do direito pudessem, com segurança, perpetrar as conseqüências tributárias próprias. Na falta desta regulamentação certas situações são elevadas à categoria de operações de cobertura de risco simplesmente porque as entidades estão munidas de autorização emitida pelo Banco Central do Brasil para a prática de certa operação – caso de bancos estrangeiros que operam hedge de patrimônio líquido, por determinação dos controladores-.
Agora surgem, no Direito Privado, ferramentas próprias para a caracterização de uma operação como sendo de cobertura de risco e vale relembrá-las no ponto:
- designação formal (documentação) do hedge;
- a eficácia do hedge, numericamente quantificada pelo coeficiente resultante da divisão entre a cobertura auferida e a perda incorrida;
- escrituração contábil própria.
Não há dúvida que este conjunto de requisitos, aprovado pela Comissão de Valores Mobiliários, passa a fazer parte da legislação comercial complementar. E diante desta constatação resta o seguinte questionamento: As autoridades tributárias poderão fazer uso destas ferramentas para alterar de ofício a eleição espontânea de um contribuinte, frente a uma operação financeira ou no mercado de capitais, como sendo uma operação de cobertura de risco? Em outras palavras: Poderão as autoridades tributárias aplicar as disposições emanadas do Comitê de Pronunciamentos Contábeis como sendo atos regulamentares do Poder Executivo, na forma da autorização expressa na Lei nº 8.981/95?
Salvo melhor juízo, entendemos que não. O poder regulamentar do CPC não o autoriza a ditar normas com finalidade tributária.
Para finalizar ainda cabe ressaltar que a coexistência de normas com mandamentos diversos nem sempre revela o vício da antinomia de lei. Em verdade o conflito entre as normas legais é apenas aparente. Cada sistema jurídico tem seus próprios objetivos; as regras podem ser concorrentes, mas não conflitantes.
IV- Conclusões
PRIMEIRA: A partir de 2.010 as entidades deverão se preocupar com a documentação formal das operações de cobertura de risco; somente a escrituração comercial ou a mera declaração serão insuficientes para atender o conjunto de requisitos probatórios;
SEGUNDA: No Direito Privado o conceito de hedge passa a ser cerrado;
TERCEIRA: O cômputo dos ganhos ou das perdas na apuração das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL não depende da substância econômica da operação e sim das regras de tributação das operações de renda fixa ou de renda variável;
QUARTA: Caso o conceito tributário de operação de cobertura de risco não seja reformado, por lei, em futuro próximo, caberá ao Poder Executivo, no exercício de seu poder regulamentar, incorporar a disciplina estabelecida pelo CPC.
QUINTA: Uma operação iniciada e designada como hedge pode ser reclassificada espontaneamente como uma operação de renda fixa ou de renda variável; o contrário não se admite porque a designação é condição preliminar na classificação da operação.
- Publicado pela FISCOSoft em 21/12/2009
RENZO & SEWAYBRICK ASSESSORIA E CONSULTORIA TRIBUTÁRIA LTDA
Dr. Jeferson Roberto Nonato